Realidade Overpower

O que faz de você nerd?

Dias atrás me peguei pensando na pergunta do post: o que faz de mim, no caso, um nerd?

Para responder a essa pergunta, tratei de mergulhar de ponta na minha própria biografia, algo que fiz sem uma gota de vinho na parada, o que terminou deixando o mergulho quase CDF. É, vamos começar esse papo brabo por esse conceito mequetrefe mesmo: CDF. Me lembro que, aos 12 anos, fui acusado de ser CDF. Não entendi porcaria alguma o que diabos significava essa porra de sigla. Na época não usava palavrão para me expressar, pois era década de 1980 e ainda não havia a HQ Preacher do Garth Ennis que, verdadeiramente, me ensinou a usar palavrões em inglês e, quando traduzida para o português, palavrões na língua de Fernando Pessoa. Fui acusado de ser CDF porque gostava de estudar. Opa! Também porque usava calça com cinto, sapato, óculos com armação quadrada, camisa horrorosa por dentro da calça, cabelo penteado e, principalmente, porque gostava de ler histórias em quadrinhos e Star Wars. Era um verdadeiro CDF para minha turma. Mas, no fundo, não me sentia CDF. Me sentia nerd, termo originário para designar adolescentes e jovens adultos estadunidenses execráveis por suas paixões por alguns tipos de filme, literatura e histórias em quadrinhos. Obviamente paguei por ser identificado com essa galera: chacota da turma e ameaças de apanhar por ser feio e nerd. Até quase apanhei de verdade na sexta série e escapei apenas porque tinha um amigo capoeirista que gostava de histórias em quadrinhos. Sorte. Lição dessa época: não me vestia mais como um “CDF” e tratei de aprender artes marciais alguns anos depois. Não aceitava que a história se repetisse. Não se repetiu, ainda bem.

De toda forma, mais ou menos nessa época, uns 5 anos depois, na verdade, embora não me trajasse como o típico CDF (me tornei o tal do “rockeiro”, trajando calça jeans, coturno e camiseta de banda de rock, no meu caso Legião Urbana e Pink Floyd, ou de – adivinha – algum super-herói), me aceitei mesmo como nerd. Não era algo pra se ter vergonha (e nem ouse dizer que não precisava sentir vergonha porque ser “nerd” só se tornou “cool” muito recentemente, algo que comentarei posteriormente), mas também não era algo pra se comemorar, ainda mais se fosse um cavaleiro solitário. Mas no “vida leva eu”, poderia dizer o filósofo musical Zeca Pagodinho, fui conhecendo uma galera que curtia histórias em quadrinhos e rock. Porra! (já tinha começado a ler Preacher), não era mais preciso ser um outsider dentro de um grupo de outsiders, afinal, ser rockeiro era ser associado, diretamente, a um marginal usuário de drogas. Engraçado foi um camarada desenhista na época responder a um sujeito que a única droga que usava era nanquim e o cara disse que não conhecia e ficou louco pra experimentar. No meu caso, sempre respondia que usava melange, o que também despertava curiosidades.

Agora, ao fazer uma retrospectiva dessa biografia nerd sebenta, chego a conclusão que ser nerd (ou considerar ou não alguém como tal) dependia de muitas regras. E quase todas muito restritivas, especialmente com as garotas. Embora todo nerd sebento que convivia comigo desejasse ardentemente que as garotas fizessem parte de nosso mundo de debates sobre Marvel ou DC ou Star Wars ou Star Trek (falávamos Guerra nas Estrelas e Jornada nas Estrelas), nós as impedíamos de participar. Como? A tática que lembro é a de negar HQ’s para elas lerem, por exemplo, inventando desculpas para não emprestar os gibis para elas, mas emprestando para usamigo omi. Idiota, não? Herança do machismo que podemos não admitir, mas que está aí, rondando feito um espírito de Lord Sith desencarnado. Me lembro até hoje quando me dei conta dessa imbecilidade e emprestei para uma amiga um gibi do Sandman. Ela se apaixonou perdidamente por Lord Morpheus. Depois disto (e estou falando de 1997, hem) passei a fazer o contrário: emprestava ou indicava gibis para as garotas que queria ficar ou namorar ou apenas amizade, para camaradas que passavam longe de desejar afundar no mundo das HQ’s e ficção científica, para qualquer pessoa. E mantenho esse espírito até hoje, até porque considero um crime contra a humanidade não indicar bons livros, gibis e discos para as pessoas, independentemente do que você tenha com elas.

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Por falar em Sandman, foi essa HQ de Neil Gaiman que fez aproximar os mundos de quem gostava de literatura e quem gostava de histórias em quadrinhos. E me fez pensar nos limites para definir quem, de verdade, pode ser definido como nerd. As pessoas, mulheres e homens, discutiam sobre a HQ de forma agregadora, quase como se um dos motivos de Sandman existir fosse romper o preconceito de quem não lia HQ com quem lia HQ que se manifestava na frase: quadrinhos são coisa de criança. É claro que, ainda assim, muitas pessoas continuavam a considerar as HQ’s como uma arte menor (ou se chegavam a considerar). Eu mesmo tive de dizer para uma ex minha que se ela considerava isto, que ela aceitasse o desafio de ler V de Vingança ou o arco Um Jogo de Você de Sandman para verificar se continuaria a pensar da mesma forma. Infelizmente ela não topou. Azar dela, que deixou de ler duas HQ’s excelentes.

O tempo foi passando e, nos anos 2000, ser nerd se tornou cool. Passou a existir até o tal do “geek”, alguém mais ligado às novas tecnologias. Até hoje estranho esse termo, talvez por ser da “velha guarda” e ligar tecnologia a quadrinhos ou ficção científica com uma facilidade enorme, mas não é o caso. O que me ensinou e muito sobre o que é ser nerd hoje em dia.

Mas vamos lá! Quem é nerd? Não existe nerd de verdade. Nunca existiu. Ninguém é uma coisa só. É clichê o que estou escrevendo? Provavelmente, mas demandou uma reflexão danada de minha parte por meio dessa retro(intro)spectiva. Minha dificuldade era me enxergar de maneira unidimensional e ao tentar fazer isto, não consegui. E tentar enxergar alguém ou a si próprio de maneira unidimensional é sempre sair perdendo na largada da corrida. E sabe porque? Porque somos uma coleção de pessoas dentro de nós. É claro que fica um rastro, um verdadeiro fio condutor que nos possibilita apontar um “Eu”, mas até mesmo este “Eu” é reflexo dessas transformações. Quando se trata de consumir cultura, nos alinhamos mais ou menos com algo e esse processo se media por escolhas. Não é que há um balcão de informações e é só chegar e pegar. Longe disso. Há restrições alheias às decisões que queira tomar e que te cerceiam. Dias desses um amigo me disse que não votaria na Marina Silva e perguntei porque, ele me disse que ela era evangélica e, por isto, abriria as portas para o conservadorismo. Politicamente, disse a ele que isso era reduzir demais tanto a pessoa quanto a política Marina Silva ao que seria uma dimensão e temos provas de inúmeros políticos que, não sendo evangélicos, criam leis e políticas que restringem direitos civis e políticos das pessoas (especialmente mulheres e minorias sexuais).

Acredito que no final das contas, esse post foi mais um desabafo por buscar vencer as auto-limitações que impus a mim mesmo. Ou, talvez, certa saudosismo de uma época que a questão mais fundamental era se perguntar se o melhor filme sci fi era Blade Runner ou Metrópolis.

7 pensamentos sobre “O que faz de você nerd?

  1. Eu me considero nerd há muito tempo, acho que desde a época dos sábados de Sci-fi do canal USA, desde a época em que eu esperava pelo episódio de Arquivo X na Record, desde a época em que eu via Beakman e lia a revista Superinteressante (que ainda era interessante e não infantil). Uma vez, um colega na escola me viu com a Super na mão e falou “nossa, como vc é nerd” e eu respondi “obrigada!”.

    Mas como você disse, ninguém nunca é totalmente uma coisa só. Rótulos costumam ser incompletos. Rótulos limitam, rótulos ofendem. Eu seria rapidamente desclassificada como nerd pela bancada fundamentalista porque uso maquiagem. Ou porque leio poucas HQs. Seria rapidamente desclassificada pela galera gamer porque não tenho nenhum console em casa, jogo apenas pelo computador.

    Ou seja, a beleza da coisa está em, exatamente, sermos permeáveis e podermos curtir nossos gostos sem rótulos. A sociedade é plural porque os seres humanos são plurais. Por que nossas escolhas precisam ser estanques?

    Ótimo desabafo! 😀

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  2. Melhor definição pra mim é a do namorado: não sou nerd, sou uma pessoa com gostos nerds. Justamente porque não somos uma coisa só.
    Eu então não poderia entrar mesmo no clubinho, a única coisa nerd que sou FÃ é o Tolkien. Adoro fantasia e ficção científica, mas conheço relativamente pouco. HQ e séries, o mesmo. Video game então, nem se fala. Gosto pouco e jogo menos ainda.
    Mas entro, porque felizmente meus amigos nerds pensam assim: o que vale é a pessoa ter gostos nerds e amar falar sobre eles, não ficar elencando conhecimentos como uma enciclopédia, meio roboticamente. E alguns deles são verdadeiras enciclopédias ambulantes (tenho a impressão de que não dormem, só pode).

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  3. Cara lembro de quando eu era menor e ia com um bando de molecada na sua casa pegar HQs emprestadas não eramos CDFs em nada mas gostávamos muito desse mundo magico dos quadrinhos mas nosso papo na escola era muito zuado entre a galera mas hoje parece é modinha gostar desta coisas.E umas das razões para eu trabalhar com Ciências (Química e Biologia) é pois quase todo herói era Cientista e acabei tendo uma facilidade e fascínio por ciências por causa da ficção. Lembro que a galera sonhava em morar no munda da Marvel e cada um escolia um poder kkkkk hoje a maioria daqueles meninos ja são pais de família mas ainda são Nerds.

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  4. Ser nerd é, acima de tudo, um estado de espírito. Não é uma coisa fechada, nós somos, especialmente, fruto do meio. Se nos restringirmos a ser apenas uma coisa e ser extremamente limítrofe, deixaremos de conhecer muita coisa boa. 😉

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  5. Me reconheci “CDF” desde quando meu professor de filosofia me apresentou Malatesta e Maquiavel na 8ª série e eu, seriamente, me dispus a ler toda aquela densidão de palavras :D. Nah, falando sério… Detesto rótulos e durante um bom tempo fui vítima disso (e ainda sou muitas vezes haha). Mas a grande sacada é isso aí, a pluralidade existente dentro de cada um e o reconhecimento de que estamos em constante transformação.

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