Literatura

A Garota na Teia de Aranha – resenha com cointreau

Desde que me entendo por leitor fiz questão de fazer meus Top 10 de personagens da literatura que mais gostei. É fácil citá-los de memória (e olha que a memória anda muito prejudicada atualmente) porque são marcantes. Posso enumerá-los e enumerá-las numa sequencia aleatória agora mesmo: Tyrion Lannister (As Crônicas de Gelo e Fogo), Paul Atreides (Duna), o Gato Kawamura (Kafka à beira-mar), Aomame (1Q84), Horselover Fat (Valis), Tyler Durden (Clube da Luta), Fernando Olmos (Sobre Heróis e Tumbas), Nariz de Ferro (A Grande Arte), Antoine Roquettin (A Náusea) e, claro, Lisbeth Salander (Trilogia Millenium e A Garota na Teia de Aranha). E é sobre ela que escrevo esse post.

Lisbeth_Salander_h9Para quem foi abduzido nos últimos anos e não sabe, o sucesso editorial da Trilogia Millenium, escrita por Stieg Larssom, foi retomado pelas mãos de outro escritor, David Lagercrantz. Antes de comentar o “quarto volume” da saga Millenium, é preciso dizer que o desafio de David Lagercrantz beirou o sobrenatural. E porque digo isso? Porque Larssom conseguiu escrever três livros que atingiram um sucesso estrondoso dentro e fora da Suécia e um sucesso no qual os direitos humanos (e, especialmente, o direito das mulheres) era o centro nevrálgico de toda a trama. (SPOILER) A trama dos três primeiros livros pautou-se na luta de uma mulher hacker, Lisbeth Salander, contra seu pai e toda uma rede de homens que exploravam mulheres. Para tanto, ela conta com a ajuda de Mikael Blomkvist, um jornalista da revista Millenium. Enquanto o primeiro volume trata de um caso específico e asqueroso de violência contra mulheres, os dois últimos volumes (digo, volumes 2 e 3) se dão no confronto de Lisbeth Salander e seu passado familiar. (FIM DO SPOILER, se é que foi spoiler).

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Stieg Larssom me prendeu absolutamente em seus livros. Lia-os madrugada adentro, triste de ter de dormir e não concluir de imediato sua leitura. Estava fascinado por Lisbeth Salander e sua história e digo: não encontro em nenhum outro livro que já li uma personagem feminina tão fascinante quanto ela. O que a move é a raiva, raiva esta contra esse sistema, o perverso machismo, que violenta mulheres e crianças, sistema este que é aproveitado por homens para subjugar e aterrorizar. Lisbeth Salander, enquanto um arquétipo, é a representação da força contrária que além de dizer Não! também devolve na mesma moeda a violência e com juros. Stieg Larssom, morto antes de ver sua obra e personagem protagonista alçada ao sucesso absoluto, nos presenteou e, ao mesmo tempo, nos tirou a possibilidade de ver a saga Millenium se desdobrar. Certo? Errado. E aí começa a questão: como dar continuidade a algo tão fabuloso?

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E aí chegamos ao novo livro de David Lagercrantz. A Garota na Teia de Aranha, publicada aqui no Brasil pela Companhia das Letras, é um livro muito bom e nos prende, mas não é um livro de Stieg Larssom. Óbvio, né? Pois é. Para quem lê costumeiramente histórias em quadrinhos, personagens que amamos trocam de escritores o tempo todo. Por algumas vezes essa troca é desastrosa, por outras não. A essência do personagem está lá preservada, cada escritor e escritora emprega na sua escrita sua perspectiva. Basicamente, o personagem é um produto e, como produto num sistema capitalista que demanda continuidade se houve sucesso para gerar mais lucro para envolvidos, temos aqui o caso da saga Millenium e de Lisbeth Salander e Mikael Blomkvist.

Na trama, Mikael Blomkvist já não tem o mesmo status de “celebridade” jornalística de antes. Lisbeth Salander está desaparecida, mas o mundo continua a gerar suas injustiças. E, no caso deste quarto volume, temos algo bem familiar para impulsionar a trama: a vigilância cibernética e todas as suas implicações perversas. Para desencadear a trama, uma engrenagem dessas implicações perversas de um mundo cada vez mais vigiado em nome da segurança, um professor é assassinado diante de seu filho, um menino autista savant. E aí tem o pontapé inicial para toda a trama envolvendo a NSA, indústrias de hardware e software, espionagem industrial, máfia russa e, claro, conflitos familiares. E mais uma vez vemos Lisbeth Salander precisando enfrentar e amarrar pontas soltas de seu passado e, desta vez, contra uma inimiga muito próxima, enquanto precisa combater “meio mundo” para fazer justiça.

David Lagercrantz escreve um bom livro. Definitivamente, é um thriller e podemos visualizar perfeitamente as personagens criadas por Stieg Larssom lá, mas senti falta e muita falta de vê-lo escrever mais sobre Lisbeth Salander. É claro que nos três volumes escritos por Larssom há uma infinidade de personagens coadjuvantes ricos e neste quarto volume temos o mesmo, mas como leitor (e apaixonado por Lisbeth Salander – e Lisbeth será o nome da minha filha se um dia ela existir), senti que o autor tardou por demais em (re) apresentar Lisbeth Salander e mesmo em aprofundar suas motivações psicológicas. É como se ele delegasse a outros personagens dizer o que ela “é” e o que mesmo sente. Mas definitivamente, ela está de volta. E é muito bom vermos uma personagem como ela quebrar a cara de covardes que violentam mulheres e crianças.

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