Cinema e afins

Noé e a assustadora realidade do fundamentalismo religioso

Quando fui assistir Noé, filme dirigido e co-roteirizado por Darren Aronofsky com John Logan, não esperava muita coisa. Quer dizer, não é bem verdade. Esperava o melhor de Aronofsky (meu diretor preferido): roteiro construído em cima de personagens muito bem consolidados com uma direção segura, mas mantendo a experimentação que lhe confere singularidade entre os diretores de grandes produções (filmes mais comerciais ou não). Mas o que encontrei em Noé foi tudo, menos a marca de Aronofsky. Não há nada de excepcional na produção do filme. Nem o elenco (Russell CroweAnthony HopkinsJennifer ConnellyDouglas BoothLogan LermanEmma Watson e Ray Winstone) conseguiu fazer muita diferença no filme, afinal, o roteiro não ajudava em nada. E, embora o filme lido o tempo todo com “milagres”, nenhum ocorreu ao longo da película que fizesse o filme ser inesquecível (como o é Requiem para um Sonho, Cisne Negro ou Pi, por exemplo).

E o que me chama mesmo a atenção é a esquizofrênica narrativa em torno da experiência humana, entre o físico e o metafísico. Claro, tudo está lá: arca, seus filhos Sem, Cam e Jaffé, mundo pré-diluviano infestado de impiedade, etc. Elementos metafísicos como os “anjos guardiões” e intervenções divinas, etc. Se estes foram os elementos “sobrenaturais”, os elementos “naturais” são aqueles mais básicos: sexo, poder, sexo, poder, sexo, etc. Mas Ben Hazrael, essa dualidade não é a premissa de qualquer produção cinematográfica que lide com a Fantasia? Sim. Mas o que assistimos em Noé é a dúvida de um diretor se deveria seguir por um caminho mais “sobrenatural” ou enveredar por um caminho mais “natural” para contar a história do profeta que “salvou” a humanidade diante do dilúvio universal que destruiu o mundo.  E a mistura desses elementos ficou pobre. O dilúvio surge, literalmente, como um “deus ex machina” para a trama. Óbvio, não, já que a trama se trata justamente de um dilúvio. Mas aí começa o problema (Ou o problema começa de verdade na ideia de produzir esse filme). Qual a mensagem deste filme? A resposta, ao menos pra mim, foi assustadora e só neste ponto acredito que o filme tenha algo a contribuir na cinematografia (e nem sei, realmente, se foi a intenção de Aronofsky). Vou contar um pouco do que percebi do filme antes de responder a questão.

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Noé (acho que preguiçosamente interpretado por Russell Crowe) “descobre” por meio de sonhos que a humanidade será eliminada. Ponto. E por meio da água e não do fogo (como seu avô, Matusalém, suspeitava diante do que seu pai, Enoque, lhe teria relatado). Cabe a ele preservar o que resta da humanidade (sua família, diga-se de passagem) e das demais espécies (por isso a famosa Arca). Chamo a atenção para o fato de que Aronofsky e John Logan, como roteiristas do filme, tomaram a ampla liberdade de construir Noé como alguém extremamente perturbado (e talvez por isto religiosos judeus, cristãos e muçulmanos tenham reclamado e muito do filme). E digo extremamente perturbado porque, ao longo do filme, ele é mostrado sempre como o “último descendente de Adão” e sua carga, além de ser pesada, é destrutiva. Se Noé é alguém preocupado com a família, ele não se importa nenhum pouco com o restante da humanidade. Sua interpretação do anúncio do dilúvio é que apenas ele e seus descendentes diretos (e não necessariamente netos e netas, como quem assistiu ao filme pode perceber) merecem salvação (há uma garota inocente que morre justamente por esse egoísmo amparado na interpretação torta de Noé sobre quem merece viver e quem não merece). Como se a maldade fosse algo herdado do sangue e não da criação e caráter. E justamente essa “eugenia moral” que me deixou assustado. Assustado porque os fundamentalistas religiosos pregam algo muito similar: se você é da fé e segue a cartilha exatamente como o líder religioso instrui, você está salvo/salva; mas se você é de outra fé ou não tenha fé alguma, você está condenado à danação. Refletindo sobre o filme agora, talvez entenda a fúria dos fundamentalistas com o filme: ele retrata, por meio de Noé, justamente o fundamentalista religioso.

ImagemNoé é um filme que mostra o perigo que é entregar a um fundamentalista religioso (ou qualquer líder carismático, ideológico ou religioso, tanto faz, mas temo muito religiosos) o poder de decisão que envolve a vida de pessoas. Noé, enquanto personagem, é movido por sua interpretação das imagens oriundas de seus sonhos. Os elementos mágicos (como a floresta que cresce instantaneamente num ambiente estéril por meio de uma semente oriunda do Éden) presentes só reforçam suas convicções internas e não há o que se discutir. E com quem discutiria? As mulheres do filme, por exemplo, tem uma função muito clara: reprodutoras. E mesmo quando não deveria existir essa reprodução seus papéis são de submissão completa. Nem nome a esposa de Noé possui. Apenas “sua mãe”. Natural neste tipo de pensamento patriarcal (muito bem retratado por Aronosfky, tenho de reconhecer). Sexo e poder, como disse antes, permeia todo o filme. E para fundamentalistas, explicar como que D’us autorizou a reprodução da humanidade por meio de incesto é algo que constrange e muito aos fundamentalistas religiosos judeus, cristãos e muçulmanos. Se você ler a Torah, lá está: Adão e Eva tiveram dois filhos, Caim e Abel, depois que o primeiro matou o último, tiveram um terceiro filho, Set. E ok. Os filhos tiveram relações sexuais com a mãe para continuar a multiplicar a humanidade? Não, de acordo com o Talmud. Tanto que lembro (se não falha a memória e ela falha bastante atualmente), Abel e Caim nasceram com irmãs gêmeas e as mesmas deveriam se casar com o outro irmão e Caim matou Abel em muito porque desejava a própria irmã gêmea. Sabemos o resultado. Interessante é notar que as irmãs gêmeas nem nome tinham. Normal para o modelo patriarcal, já que nele as mulheres tem valor por sua capacidade de reproduzirem. E fica por aí mesmo.

Então, qual a mensagem de Noé (o filme)?

Tomem muito cuidado com fundamentalistas religiosos (e reforço o caráter de fundamentalista e não necessariamente religioso). E Noé, ao longo do filme, se torna justamente isto: um fundamentalista religioso, destes que aparecem na televisão e se encontram em corredores do Congresso Nacional pregando “verdades” e julgando sob auspício de alguma “mensagem divina” e, o tempo todo, se justificando diante de erros que levam à dor e ao sofrimento das outras pessoas.

4 pensamentos sobre “Noé e a assustadora realidade do fundamentalismo religioso

  1. Bem bacana sua leitura do filme. Não tinha pensado nisso. Tenho comigo que ele quis falar do “drama do herói” mas pra mim, diferente dos outros filmes que não tinham histórias paralelas e tantas informações – Cisne Negro, por exemplo tem a Natalie Portman em praticamente todas as cenas – em “Noé” tinha muita informação pra dar conta e dramas paralelos que não contribuíram para a construção do drama de Noé – que não deve ter sido “bolinho”. “Ah, beleza, o mundo vai acabar. Sussa”. Foi isso, não! Aliás, o que o perturba é que ninguém presta, inclusive ele e sua descendência. E também acho que o Russel Crowe tá bem ruim no filme. Novesfora o mimimi religioso (judaico/cristão e islã – dava pra fazer uma nova narrativa mítica pegando fragmentos de todos os mitos, inclusive dos ameríndios), achei fraco como filme, como obra cinematográfica. Sem dúvida, o pior filme que vi do Darren.

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  2. Relutei, mas acabei assistindo Noé semana passada. Concordo em tudo. E me impressionou muito, passei uns 3 dias pensando sobre esse Noé esquizofrênico. Foi perturbador. O filho dele, acho que o Sem, que ele não amava de jeito nenhum, teve uma participação ridícula, e eu esperava a todo momento entender o papel dele ali. Mas achei interessante no final quando ele vai embora sozinho.

    Que eu me lembre, na bíblia, Caim matou Abel por ciúmes de Deus. Ele gostou mais da oferenda de Abel. E ai já viu, né. Depois disso ele vai pra algum lugar (acredito que ruim) que não me recordo, e acha uma esposa lá. E vi o Sem como o Caim, seguindo rumo ao que seria uma espécie de inferno na terra depois de tentar matar o pai. E a gente fica tentando dar um sentido pra tudo o que aconteceu.

    Olha, esse filme foi um terror.

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  3. Relutei, mas acabei assistindo Noé semana passada. Concordo em tudo. E me impressionou muito, passei uns 3 dias pensando sobre esse Noé esquizofrênico. Foi perturbador. O filho dele, acho que o Sem, que ele não amava de jeito nenhum, teve uma participação ridícula, e eu esperava a todo momento entender o papel dele ali. Mas achei interessante no final quando ele vai embora sozinho.

    Que eu me lembre, na bíblia, Caim matou Abel por ciúmes de Deus. Ele gostou mais da oferenda de Abel. E ai já viu, né. Depois disso ele vai pra algum lugar (acredito que ruim) que não me recordo, e acha uma esposa lá. E vi o Sem como o Caim, seguindo rumo ao que seria uma espécie de inferno na terra depois de tentar matar o pai. E a gente fica tentando dar um sentido pra tudo o que aconteceu.

    Olha, esse filme foi um terror.

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