História em Quadrinhos

Sandman e a Insuperável Estação das Brumas

Quando me deparei com a edição #3 de Sandman, publicada pela Editora Globo na quase “distante” década de 1990, tive certeza que tinha em mãos um gibi “estranho” – para dizer o mínimo. Sandman ainda era uma verdadeira “experimentação” de Neil Gaiman (seu escritor – criador) e da editora Karen Berger. E digo “experimentação” porque ainda em seu primeiro arco – Prelúdios & Noturnos – havia uma mistura de elementos super-heroísticos, ainda que a atmosfera de “horror” verdadeiramente imperasse na trama. Prelúdios & Noturnos, definitivamente, me fisgou. E, especialmente, por seu protagonista: Sonho, um dos 7 Perpétuos, cujos irmãos e irmãs são Morte, Destino, Destruição, Desespero, Desejo e Delírio. No original em inglês, todos com suas iniciais com “D” – algo que não pode ser incorporado na tradução ao português, uma pena, mas algo que não tirou o brilhantismo criativo de Neil Gaiman em projetar metafisicamente sentimentos tão antropomórficos como os caracterizados pelos Perpétuos.

Sandman trouxe aos leitores de HQ habituados aos universos de colantes coloridos e super poderes uma perspectiva diferenciada de se sentir prazer em ler histórias em quadrinhos. E boa parte da responsabilidade disso se deve a uma liberdade criativa que Neil Gaiman só teria num selo “independente” da DC Comics como foi a Vertigo. Sandman havia marcado, definitivamente, uma forma diferenciada de se produzir HQ’s – herdeira, com toda certeza, das maluquices de Alan Moore com o Monstro do Pântano. Mas Sandman se distinguia de outras HQ’s por ser “quase literária”. E, verdadeiramente, uma graphic novel. Fosse por Prelúdios & Noturnos ou A Casa de Bonecas (ou qualquer outro arco da série Sandman), por exemplo, Neil Gaiman criou definitivamente a ponte entre literatura e histórias em quadrinhos. Mas verdade seja dita, Sandman só adentrou definitivamente em meu Top 5 de melhores séries de HQ por causa de Estação das Brumas e, como consta na abertura de seu Capítulo 1: “no qual o Senhor dos Sonhos cuida dos preparativos para visitar os domínios infernais; fazem-se as despedidas; ergue-se um brinde; e, no inferno, o Adversário cuida de seus próprios preparativos.”

Sim, em Estação das Brumas o Sonho irá descer ao Inferno. E por quê? Para buscar sua amada, Nada, que o mesmo havia condenado a passar 10.000 anos no Inferno por haver escolhido recusar seu amor.

É metafisicamente espetacular ou não?

Em Estação das Brumas tudo se inicia numa reunião de família. No caso, os Perpétuos. E tal reunião não poderia, claro, deixar de ser permeada por brigas e verdades. E uma verdade pode se sair, dependendo da boca de quem fala, como uma amarga bofetada no rosto. E Desejo – de forma provocativa – fez questão de dar essa bofetada em Sonho (como gosto dessa metafísica toda de Sandman!) ao lhe dizer que o Senhor dos Sonhos condenou sua amada porque ela não aceitou sua oferta de imortalidade. E Morte – sua querida irmã – fez questão de reforçar esse comportamento egoísta e cruel de seu irmão Sonho.

Diante do reconhecimento de seu comportamento cruel, Sonho decide retornar ao Inferno. Retornar? Sim, no arco Prelúdios & Noturnos acompanhamos Sonho aprisionado por um mago que desejava impedir o trabalho da Morte, mas acaba capturando o Sonho – e libertado – necessitando reconstruir seu reino, o Sonhar, e consertar os estragos de sua ausência, incluindo nisto recuperar seus instrumentos – como o elmo, o rubi e a algibeira. E para recuperar seu elmo, Morpheus precisa ir ao Inferno de Lúcifer – Estrela da Manhã enfrentar um demônio que se apoderou do elmo. E Morpheus vence o desafio (uma batalha que poderia ser, perfeitamente, um RPG), mas deixa atrás de si uma promessa de vingança por parte de Lúcifer.

Retomando ao arco Estação das Brumas, Sandman ruma ao Inferno e o encontra vazio. Que espanto não foi o meu ao ler essa edição e ver um Inferno de ausência – nada havia lá, absolutamente nada. Apenas Lúcifer – Estrela da Manhã. E sua recusa em continuar a ser o Rei do Inferno e antagonista num conflito de milhões e milhões de éons com o Paraíso. Lúcifer entrega ao Sonho as chaves do Inferno porque se cansou da guerra com o Paraíso e de tudo que o Inferno representava. A partir do momento em que possui as chaves do Inferno, o Sonho reina no Inferno. Mais uma salva de palmas para a genialidade de Neil Gaiman como escritor. Considero essa passagem de Estação das Brumas como um dos momentos mais significantes da história das histórias em quadrinhos. Aqui a metafísica chega ao seu auge no arco Estação das Brumas.

Mas uma notícia dessas chamaria muita atenção de todo o espectro metafísico existente. E mais uma vez Neil Gaiman brinca com os arquétipos metafísicos de diversas culturas. Neil Gaiman, como um bom escritor, pauta suas histórias em sólido conhecimento. E sua diversão é mostrar a interação de diversas divindades no Sonhar em busca de obter do Sonho as chaves do Inferno, afinal, o Inferno era um vasto território agora abandonado clamando por nov@s don@s, não?

Lá estão divindades nórdicas, egípicias, nipônicas, demônios, representantes da Ordem e do Caos, anjos e demônios, entre várias outras personificações imagéticas. É delicioso acompanhar o desenrolar da trama, as artimanhas, propostas e negociações – envolvendo interesses diretos e indiretos do Sonho – em torno de algo que – em tese – causaria repulsa: o Inferno. Temos aí uma trama que chega ao seu ápice em escolher quem podem ser os novos responsáveis. E quem seria?

Ah, estamos falando do Inferno e no Inferno o (s) responsável (eis) sempre deverão ser anjos. E foram os anjos – apenas observadores, acreditavam – os escolhidos. O que causa aos outros demandantes pelo Inferno indiferença, cinismo e revolta. E no caso da revolta, ela se deu pelos demônios que detinham em seu poder Nada. O motivo da ida de Sonho ao Inferno.

Sonho liberta Nada das mãos dos demônios e concede-lhe, finalmente, liberdade. E tão importante quanto a liberdade, Sonho reconhece seu erro e crueldade a Nada. É claro que estou sendo muito breve em resenhar este momento, até mesmo porque escrevo esta resenha para estimular quem leu a apreciar esta obra – Sandman: Estação das Brumas – mas também envolver as memórias de quem já leu a obra e a apreciou como eu apreciei.

Estação das Brumas termina com o renascimento de Nada. É um momento espetacular na HQ. E se encerra com o magistral destino de Lúcifer, numa bela praia da Austrália, contemplando o pôr-do-sol.

Definitivamente o Destino – sim, até mesmo o Destino – pode nos dar e também receber (des) agradáveis surpresas. E muitas vezes temos de saber reconhecer nossos erros e fazer algo para corrigi-los (e não apenas falarmos que erramos e ficar por isto mesmo). Foi o que Sonho fez. Não apenas Nada se libertou, mas o próprio Sonho se libertou.

Estação das Brumas é o arco da série Sandman que mais me impressionou e, como já disse, é o meu arco preferido e uma das melhores histórias em quadrinhos que já li em minha vida. A Panini vem publicando a versão Sandman – Absolute e já foram publicados dois volumes. A edição é excelente e vale a pena ter na sua prateleira.

 

3 pensamentos sobre “Sandman e a Insuperável Estação das Brumas

  1. Acabei de terminar o arco. Nossa, genial! Li há dois mas não tinha prestado muita atenção nos detalhes. Nessa releitura, agora estando mais “maduro”, só posso dizer que foi uma das melhores coisas que eu já li. Gaiman é demais…
    Adorei sua resenha também.

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