História em Quadrinhos

V de Vingança: Resenha com Cointreau

“Como se diz, vale tudo no amor e na guerra e como no caso, trata-se de ambos, maior a validade. (…) Embora ostente eu os cornos de um traído, não serão eles coroa que usarei sózinho. Como vê, meu rival, embora inclinado a pernoitar fora, amava a mulher que tinha em casa!”

Quem lê uma passagem dessas pode imaginar uma personagem numa situação de tensão emotiva extrema, absorta completamente numa relação amarga de traição e vingança. É, de certa forma é isso mesmo, mas longe, muito longe de imaginar que essa “mulher” ou “os cornos de um traído” se tratam de um relacionamento de duas pessoas de carne e osso. Não, ao menos uma delas passa longe de carne e osso. É um ideal. E estamos tratando da maior obra de Histórias em Quadrinhos de todos os tempos (na minha opinião de leitor voraz de HQ): V de Vingança.

Muitos (as) consideram que a melhor obra de HQ do bruxo barbudo Alan Moore seja Watchmen. Eu discordo. As razões são variadas. Seja pela empatia pela temática da obra, seja pela qualidade textual que a cerca (os melhores diálogos que já li, até mesmo na literatura). V de Vingança é, na minha opinião, mais do que uma HQ. É um verdadeiro manifesto, no melhor dos sentidos e vamos, então, degustar essa HQ!

Não há calibre que mate uma ideia!

Imagine um Estado totalitário. Numa definição rasteira, um Estado totalitário é aquele tipo de organização sócio-política que tem alto teor de concentração decisória política e pouco ou nenhum espaço para representação e participação política amparadas em eleições livres e idôneas, ausência de espaço político para oposição ao governo, entre outras necessidades poliárquicas simples. A coisa engrossa mesmo para o lado das liberdades civis (aquelas individuais, relativas a liberdade de expressão, etc) que são o baluarte da premissa iluminista dos Direitos Humanos. Num Estado totalitário, Direitos Humanos e quaisquer direitos que não sejam deveres e comprometimento com o regime é ‘a mais pura balela e história para boi dormir…encarcerado”.

Nos mais nefastos e clássicos Estados totalitários do século XX, um dos pontos altos (e negativos, claro) foi as constantes e genocidas perseguições a minorias. Sejam políticas, étnicas, sexuais e religiosas. É claro que não foram apenas Estados totalitários que promoveram “limpezas étnicas”, mas foram exemplos na administração de medidas políticas e sociais para eliminar populações. Tudo devido a diferença. O que me faz pensar na real dificuldade da alteridade para os fundamentos de um regime político que seja totalitário. No caso,existe uma completa e crua incompatibilidade de termos e princípios entre alteridade (política, social, econômica, étnica) e regime totalitário.

Mas porque, diabos, estou fazendo esse preâmbulo todo para entrar na análise da HQ V de Vingança? 

Simples. É porque a HQ “só” tem razão de ser entendida, como proposta artística, se for entendida através das ideologias políticas que personificam alguns de seus personagens.

E talvez analisar V de Vingança através da jornada de alguns de seus personagens seja meritório para entender, de certa forma, o que leva muitos a aderirem a um modelo hegemônico e outros partirem para sua antítese. E dois personagens, mais do que quaisquer outros detêm essas características: o Líder e, claro, V. Por suas ideologias, mas muito mais do que por isso, por suas respectivas amantes: e o conflito, de certa forma passional que os segue com a Justiça, a Anarquia e o Destino. E, como já diria o próprio V:

“Como se vê, vale tudo no amor e na guerra. Como no caso trata-se de ambos, maior a validade!”

Primeiramente, a história. A HQ V for Vendetta retrata um mundo pós-apocaliptico, que sobreviveu por pouco a Terceira Guerra Mundial. Os regimes democráticos e mais abertos politicamente encontram-se em extinção e, na Grã-Bretanha (palco da história em quadrinhos), ascendeu ao poder um partido totalitário. Seus tentáculos ampliaram-se de tamanho e envergadura e passaram a dominar completamente o Estado. Mas o que o fez ganhar força? O desespero das pessoas. Num mundo de pouca estabilidade política, econômica e social, os receituários fascistas são fascinantes. Suas promessas são simples, assim como a identificação dos “reais” causadores da instabilidade que cerca a sociedade: as minorias. Foi assim na Alemanha Nazista, com os judeus, ciganos, entre outros, para ficar no caso, lamentavelmente, mais famoso. E não foi diferente nessa Grã-Bretanha fascista. Na HQ narra-se, através de vários personagens como Evey Hammond (por uma lógica ainda em amadurecimento de todo esse processo histórico) ou do próprio V (numa visão poética, mas duramente poética) esse mundo que existia antes, cheio de “pessoas de cor” e de “homens afeminados”. Analisando agora a HQ, me recordo da carta de Valerie que Evey recebe de V, durante sua “libertação”. É mais do que bela essa carta. É viva. E relata esse mundo onde ser diferente passa a ser crime.

Para superar as amarras que nos prendem, temos de renascer. Mas todo parto é dor, acima de tudo, como sente Evey.

Talvez um dos momentos mais marcantes da HQ seja a descoberta, pelo detetive Finch (que investigava a séirie de assassinatos cometidos por V) se depara com os restos de um campo de concentração. Imagina o choque de observar um campo de concentração “de cara”. Agora imagine olhar esse campo de concentração após usar LSD. Foi o caso do detetive Finch. E fico imaginando, através das páginas da HQ, o pavor das visões que a imaginação inconsciente inflige ao consciente. A própria existência de um campo de concentração e o que se faz em um é a degradação máxima de qualquer anseio por justiça. E por falar em Justiça, V foi enamorado por ela. E esse caso de amor não terminou bem, como ilustra a imagem abaixo.

V & Justiça: traição e dor no final do “relacionamento” ideal

O mundo que nos traz V é um mundo onde a Justiça se dobrou ao Fascismo. O diálogo (entre os três melhores da HQ) entre V e a “Madame Justiça” é o reflexo da passionalidade não apenas de nossos sentimentos, mas também de nossas ideologias. Como nota, reconheço que até hoje fico rindo ao reler a passagem que a Justiça chama a Anarquia de “aquela meretriz de lábios vermelhos e sorriso vulgar“.V se sente traído pela Justiça e encontra nos braços da Anarquia aquilo que tanto ansiava: uma forma de enxergar uma realidadee para além daquela que lhe cercava. Reconhecer que sua amada lhe traiu com aquele (outro ideal) que mais despreza é mortal para qualquer coração e V reconhece isto. E planeja sua vingança. Sua vingança é detalhista. V quer quebrar o sistema político fascista acima de tudo. 

Não adianta destruir apenas a estátua da Justiça ou o Parlamento (como o faz magistralmente inspirado por música clássica), mas dobrar suas convicções. Ao mesmo tempo que persegue todos seus carcereiros (sim, V foi um detido num campo de concentração e cobaia de experimentos), executando-os primeiramente em suas crenças e depois eliminando-os, V orquestra a quebra do sistema através daqueles que sustentam o regime: o povo. E seu recado não é nada delicado. Assumindo os meios de comunicação oficiais, V se torna interlocutor do passado e agente responsabilizador do presente. E deixa claro: se o mundo está essa bosta, boa parte da culpa é de vocês, telespectadores, que permitiram que isso ocorresse.

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 E quanto ao Líder, autoridade máxima do Regime? Bom, o Líder também é um sujeito apaixonado, não pela Justiça e muito menos pela Anarquia, mas pelo Destino. No caso, Destino é um computador, mas representa a ordem, mas uma ordem imposta, exercida pelo controle absoluto e lealdade também absoluta ao regime. O próprio Líder reconhece que direitos são luxos que não cabiam mais neste mundo que vivia. Mas assim como a Justiça traiu V com o totalitarismo “dos homens com botas”, Destino também traiu o Líder. E logo com V. Mas quem é V? 

Quem é V? Uma ideia…

Durante toda a revista tenta-se descobrir quem é essa pessoa, que foi torturada e submetida a experimentos científicos, se é homem ou mulher, se era um “paqui” ou homossexual, o que era V? A resposta nunca veio. E nunca virá. V é antes de tudo uma ideia, como ao final da revista comprova-se. E ideias não podem ser mortas a tiros, como ocorreu com o Líder e com o próprio V. O que V ofereceu ao povo, após desmontar o sistema totalitário, foi uma nova chance de se guiar, não através do medo imposto pelo regime fechado e fascista, mas através da liberdade política. A escolha, ao final da revista, é dada ao povo. E aceita. Como diria V, “Anarquia não é caos, Anarquia é ausência de líderes”.

Mas será que V é, essencialmente, apenas um V de Vingança? Acho que não. Também é V de Virtú. Que, segundo Maquiavel, deve cada governante possuir ao lado da Fortuna. E acima de tudo, cada um de nós, cidadãos e cidadãs dos mais variados cantos dessa Terra.

6 pensamentos sobre “V de Vingança: Resenha com Cointreau

  1. Pingback: V de Verdade | Diário de um Casal

  2. Belo texto. V de Vingança é uma obra espetacular dos quadrinhos. Parabéns!

    P.S.: Cheguei aqui pelo comentário que você deixou no meu texto sobre Transformers 3 e tive uma bela surpresa. Muito bom seu blog!

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